O jornal Valor Econômico publicou, nesta quinta-feira (20), o artigo “Licenciamento ambiental, consenso ou desastre”, de autoria da presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB, Marina Gadelha. O texto tem coautoria da presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), Cristina Seixas Graça, e do consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Mauricio Guetta.
Veja abaixo a íntegra do artigo:
Licenciamento ambiental, consenso ou desastre
Apesar do desastre da Samarco, em Mariana (MG), em 2015, o Estado de Minas Gerais aprovou lei para flexibilizar o licenciamento ambiental. Na sequência, uma norma editada pela Secretaria de Meio Ambiente estadual permitiu a reclassificação do grau de risco de empreendimentos causadores de impacto ambiental, culminando no rebaixamento, do grau seis para o grau quatro, do risco da barragem da mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG). Pouco depois, em 25 de janeiro de 2019, o Brasil e o mundo acompanharam, estarrecidos, a tragédia causada pelo colapso desse reservatório, com a morte de 272 pessoas e danos ambientais irreparáveis.
Destinado à prevenção de impactos e desastres socioambientais, além da compatibilização de atividades econômicas com o equilíbrio ecológico, o licenciamento ambiental foi inserido na legislação federal pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981. Em meio ao regime militar, num ambiente hostil à proteção ambiental, a aprovação da norma somente foi possível devido à busca incansável pelo consenso. Paulo Nogueira Neto, patrono da política ambiental brasileira, liderou um processo aberto e amplo de diálogo, focado em acordos com setores antagônicos. O resultado foi uma lei equilibrada, que alia a proteção ambiental ao desenvolvimento econômico.
O espírito conciliador que marcou a trajetória do professor Nogueira Neto, falecido um mês após o desastre em Brumadinho, parece ter inspirado a Câmara dos Deputados na matéria ambiental, em 2019. O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), teve papel fundamental na contenção do desmonte das políticas ambientais. Além disso, privilegiou o diálogo e, assim, conseguiu aprovar um projeto de lei sobre pagamento por serviços ambientais, que dividia ambientalistas e ruralistas.
Na difícil discussão do projeto da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, Rodrigo Maia reiterou aos parlamentares a necessidade do consenso. Constituiu um Grupo de Trabalho (GT), nomeou o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) para coordená-lo e permitiu a realização de audiências públicas sobre as dez principais polêmicas envolvendo o projeto.
A proposta inicial do GT foi reformulada e republicada duas vezes para contemplar os acordos estabelecidos. Depois disso, para a surpresa de todos, Kataguiri rompeu os consensos firmados e apresentou um substitutivo que torna o licenciamento exceção, em vez de regra, gerando forte reação da sociedade civil, da comunidade científica, de técnicos de órgãos ambientais, do Ministério Público, da advocacia pública e privada e de representantes do empresariado.
Diversos pontos do texto divulgado colidem com preceitos básicos da Constituição, inclusive com precedentes do Supremo Tribunal Federal, especialmente no que toca à proteção ao meio ambiente, aos povos indígenas e outros aspectos sociais. O meio ambiente e a sociedade saíram perdendo em dez das dez polêmicas debatidas no GT.
Vejamos alguns exemplos emblemáticos de retrocesso. Em contrariedade a 40 anos de teoria e prática, o projeto exclui do licenciamento todos os impactos indiretos causados por empreendimentos, com graves consequências socioambientais. O desmatamento decorrente da instalação, ampliação e pavimentação de estradas na Amazônia – aproximadamente 95% do desmatamento na Amazônia brasileira ocorre em um raio de 5,5 km das estradas – passaria a não ser sequer previsto nas avaliações de impacto. Da mesma forma, não seriam endereçados impactos como o esgotamento de serviços públicos essenciais – hospitais, escolas, saneamento básico etc. – em municípios que percebem expressivos aumentos populacionais devido à instalação de empreendimentos de significativo impacto, como no caso de hidrelétricas.
À semelhança do que se verifica em vários pontos do texto, os impactos indiretos serão ocasionados na prática, mas não serão solucionados pelo licenciamento. Além disso, a proposta elimina a avaliação de risco, instrumento essencial para mensurar e prevenir desastres socioambientais.
A licença ambiental corretiva, destinada a regularizar empreendimentos sem licença, será mais fácil de obter do que a licença ordinária, resultando em incentivo ao descumprimento da própria lei. Ademais, empreendimentos de infraestrutura, que causam impactos significativos, poderão ser licenciados de forma simplificada, ou até autodeclaratória, rompendo a orientação pela proporcionalidade entre o grau de impacto do empreendimento e o rigor do licenciamento ambiental. Aliás, a adoção de licenciamento autodeclaratório, sem a prévia avaliação do órgão ambiental, poderá ser a regra em todo o Brasil. Há, ainda, ameaças irreversíveis a unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas e patrimônio histórico e cultural.
Sequer os impactos à saúde foram contemplados, uma vez que o Ministério da Saúde foi excluído do rol de autoridades envolvidas no licenciamento ambiental. Ficaram mantidas na proposta dispensas de licenciamento a atividades causadoras de impacto ambiental, apesar de já terem sido declaradas inconstitucionais pelo STF.
No momento em que se anuncia a votação do projeto como a primeira pauta importante do plenário da Câmara em 2020, é preciso resgatar as lições de Paulo Nogueira Neto e compreender que a eventual aprovação de propostas de enfraquecimento do licenciamento ambiental, além de fazer proliferar riscos de novos desastres socioambientais, resultará em insegurança jurídica, aumento da judicialização e restrições a investimentos e ao comércio internacional.
Caminhar no sentido do equilíbrio e dos consensos significa garantir que o desenvolvimento seja realizado com o imprescindível atendimento a valores constitucionais, incluindo, necessariamente, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e demais direitos fundamentais da sociedade.
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Cristina Seixas Graça é presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa)
Marina Gadelha é presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB
Mauricio Guetta é consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA)